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Por Mário Freitas

Os TOPS de sagas, capas ou criadores sempre foram um tema popular e palco de curiosos debates e sã discussão. Fechamos aqui o dos 20 maiores criadores de comics a solo, autores completos da BD americana que se notabilizaram pela criação, escrita e desenho de parte significativa ou relevante da sua obra.

Do nº 10 ao 2, continuámos a atravessar décadas e gerações de criadores da BD americana. Recordem aqui quem foram eles! E quem será então o maior dos maiores criadores de comics a solo?

Nº 1 – JACK KIRBY!

Inevitável, Sem surpresa. Que outro autor criou e imaginou personagens, sagas e universos ao longo de quase 50 anos ininterruptos de carreira? Que outro autor se inventou e reinventou continuamente, do final da década de 30 ao início da década de 80? Um, e só um; e por isso foi apelidado de JACK “THE KING” KIRBY.

Com Joe Simon, homem metódico e sagaz, criou uma parceria que deu ao mundo Capitão América e pôs a Marvel, então Timely Comics, no mapa. Campeões de vendas, produziram para a National, hoje DC Comics, o mais popular comic de guerra da época, Boy Commandos, onde estabeleceram o género dos “kids’s gang” depois cimentado com “Newsboy Legion”. É absolutamente impossível saber ao certo quem escreveu o quê, mas é hoje quase ponto assente que era a Kirby o grande motor criativo, cabendo a Joe Simon a parte editorial e empresarial da dupla.

No final da década de 40, quando a febre inicial dos super-hérois e dos war comics se desvanece, Kirby e Simon criam Young Romance, o primeiro dos Romance Comics e aquele que viria a gerar múltiplas imitações menores ao longo da década. A arte de Kirby começa a amadurecer e a ganhar contornos perfeitos para a narração de temas mais adultos e capazes, sobretudo, de atrair públicos diferentes, em particular o feminino. Criam a seguir aquela que é ainda hoje considerado uma das melhores séries da Golden Age, a curta mas sublime “Boys’ Ranch” que inclui uma das obras-primas da carreira de Kirby, o poderoso e pungente “Mother Delilah”. Um Western único que quebra os cânones atribuídos ao género.

Em meados da década de 50, Kirby e Simon criam a sua própria companhia, a Mainline Comics, com ideias arrojadas como o comic de guerra, puro e duro, Fox Hole, ou Fighting American, uma deliciosa paródia ao ícone que os tornou famosos. Mas o timing revelou-se desastroso. A campanha anti-comics do psicólogo Frederic Wertham e o surgimento do Comics Code Authority arrasam a indústria e dão cabo da EC Comics, a grande editora de comics mais adultos da época. Isso arrasta a distribuidora da companhia, precisamente a mesma da Mainline Comics de Simon e Kirby. A nova editora sucumbe. A pareceria dissolve-se ao fim de 15 anos. E, praticamente, nunca mais se ouviu falar de Joe Simon.

Entre alguns trabalhos de freelancing, Kirby rejuvenesce o Green Arrow e cria os Challengers of The Unknown para a DC. O editor Jack Schiff consegue um suposto bom contrato e Kirby começa a sensacional tira de jornal “Skymasters of The Sky Force”, com prodigiosa arte-final do mago Wally Wood. Porém, um desacordo financeiro de fundo entre Kirby e Schiff afasta Kirby da DC, deixando-lhe um único lugar realmente viável para continuar a carreira: a Atlas, de Martin Goodman e Stan Lee, uma editora no limbo que acabara também de perder a distribuidora, e que fora forçada a passar de 65 para 8 títulos mensais.

A “MARVEL AGE”

Ponto prévio: como devem calcular, sim, eu sei que aquilo que se abora neste parágrafo não é 100% Jack Kirby. Durante toda a década de 60, o editor Stan Lee teve papel relevante, ou até fundamental, sendo o quase omnipresente escritor de diálogos da companhia. Dito isto, das primeiras histórias de Monstros em 1958 às últimas histórias de Thor e Fantastic Four em 1969, Kirby foi o grande motor criativo da Marvel e foi da sua imaginação que saiu parte esmagadora das personagens mais relevantes da época. Assim, é um período incontornável de criações incontornáveis que não poderia passar aqui em branco.

A chegada de Kirby e Ditko à Atlas/Marvel, no final dos anos 50, apanha uma companhia quase moribunda, mergulhada na crise da distribuição e confinada à publicação de 8 meros títulos mensais. Durante cerca de 3 anos, as histórias de monstros, fantasia e sci-fi vão mantendo a editora à tona, mas, em 1961, a moda esfuma-se e Martin Goodman pondera encerrar a divisão de comics da companhia. As versões e relatos diferem, e o então recente sucesso dos novos super-heróis da DC poderá ter tido influência, mas o que é certo é que é a partir daí que surgem as grandes criações da Marvel, as tais que mudaram para sempre os comics e tudo o resto que vocês já sabem.

Fantastic Four. Hulk. Thor. Ant-Man. Avengers. X-Men. Nick Fury. A lista de colaborações de Kirby e Lee é extensa e a forma como dividiam as tarefas é hoje clara. Nas palavras do próprio Stan Lee “O Jack é tão bom a criar histórias que basta dizer-lhe para pôr o Dr.Doom no próximo número de FF. Na maior parte das vezes nem preciso de lhe dizer nada e é ele que sugere tudo e aparece com as histórias já feitas. Só preciso de fazer alguma edição e acrescentar os diálogos.”. E este método foi-se acentuando com os anos…

A partir de 1965, em particular, as histórias são puro Kirby. Os Inumanos, Galactus, Silver Surfer, Ronan The Accuser, os Colonizadores de Rigel, Ego O Planeta Vivo, Ulik, Mangog, Him, a SHIELD, a Hydra, etc., etc. etc. As sagas são cada vez mais cósmicas e ambiciosas; a arte de Kirby é cada vez mais poderosa, maior que a vida. Depois de 30 anos de maturação, o Demiurgo nasce enfim. All hail Jack THE KING Kirby. Mas nem tudo eram rosas no reino da Marvel: Wally Wood tinha batido com a porta; Steve Ditko idem; Jim Steranko preparava-se para fazer o mesmo; e Kirby estava cada vez mais descontente. Por um lado, a falta de créditos devidos na criação das histórias; por outro as contradições recorrentes entre as intenções narrativas de Kirby, plasmadas nas anotações nas margens das pranchas originais, e os diálogos posteriores escritos por Stan Lee.

É nesta época também que Stan Lee se assume cada vez mais como o símbolo e a grande imagem de marca da Marvel Comics. Em 1969, Martin Goodman vende a companhia e os novos donos reconhecem apenas o brilhantismo de Lee; nem sabem quem Kirby é, como se fosse ele apenas um mero desenhador tarefeiro. É a gota de água: Kirby liga a Carmine Infantino e acorda o seu regresso à DC, já livre de Jack Schiff e Mort Weisinger. O Quarto Mundo estava a chegar.

NOVOS DEUSES E O QUARTO MUNDO

Ao chegar à DC em 1970, a ambição de Jack Kirby era bem maior do que continuar a contar histórias ao estilo do que fizera na Marvel. Com o quase ou aparente pleno controlo das suas criações, o eterno demiurgo trazia ideias arrojadas para formatos de publicação ou formatos de histórias: magazines a cores com temáticas adultas e papel de qualidade; títulos encadeados que fossem posteriormente editados em formatos compilados, chamemos-lhes graphic novels ou omnibus, dignos de constarem das melhores livrarias.

Para variar, Kirby estava à frente do seu tempo. “Spirit World” e “In The Days of The Mob” foram publicados como banais magazines, a preto e branco e em papel de jornal. Cedo, o caos na distribuição que começou a minar a DC no início da década de 70 deitou por terra a ambição renovadora de Kirby. Entretanto, dedicava-se aos quatro títulos encadeados dos Novos Deuses e o seu Quarto Mundo, uma continuação directa de um Thor pós-Ragnarok jamais concretizado na Marvel. Uma narrativa densa, marcada pelos diálogos operáticos mas nem sempre escorreitos de Kirby; uma narrativa ambiciosa que exigia demais dos leitores da época, e pleaneada a longo prazo, prazo esse que Kirby acabou por não ter.

Ao fim de meros 11 números, New Gods e Forever People são cancelados. As vendas globais da DC caem a pique e as dos títulos de Kirby parecem longe da enorme expectativa gerada. Kirby fica devastado. É como se a equação anti-vida de Darkseid, uma das criações maiores do génio americano, se tivesse abatido sobre ele. Mas Kirby é um lutador; se não fora a 2ª Guerra a derrotá-lo, não seria a precipitação de Carmine Infantino a fazê-lo. E volta à carga! Kamandi, The Demon, The Losers, OMAC; da ficção medieval ou futurista à crua realidade do teatro de guerra, a imaginação de Kirby fervilha. Artística e criativamente, estamos sem dúvida perante a fase mais brilhante da sua carreira. Porém…

Kirby não se sente “em casa”. A liderança metediça mas titubeante de Infantino jamais é capaz de pôr em ordem as vozes anacronísticas de nomes de peso na DC, que nunca deixaram de ver Kirby como o “inimigo”; alguém que pertencia à “outra editora”, a tal que, segundo eles, produzia material de “baixa qualidade”. Estávamos em 1975 e Kirby opta por não renovar o seu contrato com a DC. Engole o orgulho, fala com Roy Thomas e fica a aguardar a decisão de Stan Lee. O regresso à Marvel estava iminente.

O REGRESSO À MARVEL

De todos os defeitos que se lhe pudessem apontar, o rancor não seria decerto uma marca de Stan Lee. Em finais de 75, o então “publisher” da Marvel aceita o regresso de Jack Kirby, mesmo depois dos episódios de mágoa e ressentimento que este demonstrara para com o seu antigo editor e colaborador. No fundo, era como se Funky Flashman voltasse a receber Mister Miracle de braços abertos (se desconhecem o episódio, pesquisem, vale bem a pena).

As condições de Kirby para o regresso são aceites e este assume total controlo criativo das suas histórias. Arranca com um Capitão América poderoso, num sensacional “Mad Bomb”, tão cortante e actual, ou não enfrentasse Steve Rogers uma poderosa conspiração de racistas e xenófobos, determinados a assumir o poder nos Estados Unidos. Mas é pela ficção cósmica que Kirby nutre maior paixão nesta etapa da sua vida, e onde as suas energias criativas mais fluem e brilham. Adapta o 2001 de Kubrik e Clarke e cria em seguida uma série que desenvolve os conceitos do livro e do filme, com histórias que mostram o impacto do Monolito ao longo das eras.

É com Os Eternos, porém, que Jack Kirby cria a sua mais portentosa série desta sua 3ª passagem pela Marvel. O que aconteceria se os Deuses que criaram a humanidade voltassem à Terra para julgar a raça humana? E se não fôssemos afinal a única espécie sentiente a habitar o planeta? O regresso dos Celestiais e a nova guerra entre Eternos e Deviantes é um verdadeiro prodígio visual e de imaginação. Kirby cria algumas das suas melhores “double spreads” de sempre, como pano de fundo de uma saga como só o Rei poderia conceber, repleta de panteões de Deuses e demónios, dignos herdeiros de Asgard e dos Novos Deuses.

Já em 1977, Kirby regressa ao Black Panther, colocando o Rei de Wakanda em histórias à Indiana Jones, antes de existir Indiana Jones. É um corte dramático com a fase anterior da personagem, escrita por Don McGregor num tom mais adulto e profundo. Por absurdo que isso hoje pareça, o estilo de Kirby começa a ser considerado ultrapassado, e certos jovens editores da Marvel ousam mesmo apelidá-lo de “Jack The Hack”. O ambiente torna-se adverso para Kirby, pouco interessando que ele continuasse a produzir histórias repletas de imaginação e alguma da melhor arte da sua carreira.

Devil Dinosaur é bem exemplo disso: uma série despretensiosa sobre um rapaz pré-histórico e o seu tiranossauro, com páginas verdadeiramente deslumbrantes e verdadeiros laivos de surrealismo pictórico. E talvez fosse esse o problema, numa década dominada pelo estilo ilustrativo mais realista de Neal Adams ou John Buscema. Estávamos em 1978, e a carreira de Jack Kirby, aos 61 anos, ia passar pela última grande mudança. Finalmente para muito melhor.

AS ÚLTIMAS CRIAÇÕES

Em 1978, a segunda vida de Kirby na Marvel termina de forma curiosa: na Animação, na série de Fantastic Four que introduziu o famigerado robô Herbie em substituição do Tocha Humana. Uma empreitada que abriu as portas dos estúdios de animação de Hollywood à imaginação e aos conceitos de Kirby, que se sente finalmente reconhecido e recompensado.

É também nessa altura que é contratado por Barry Ira Gellar para criar os designs e concepção visual da adaptação ao cinema de “Lord of Light”, o prodigioso romance de scifi de Roger Zelazny. Kirby está nas suas “sete quintas” e produz imagens espantosas de arrojo e detalhe, uma gigante chapada de luva branca aos medíocres que tinham ousado proclamar o seu fim criativo. Mas Kirby respirava comics; estes eram a sua vida. No início da década de 80, a Pacific publica Captain Victory e Silver Star, as suas últimas grandes criações cósmicas. E desengane-se quem pensava que o Quarto Mundo de Kirby tinha acabado…

De forma inesperada, porém tão lógica, Captain Victory and His Galatic Rangers revela-se uma continuação de New Gods, desvendando o futuro de Darkseid e da descendência de Orion. Mas Kirby estava destinado a voltar à sua criação maior e, em 1984, a DC convida Kirby a terminar a saga que fora forçado a abandonar em 1972. As restrições são muitas, as páginas poucas; o mundo mudara, Kirby mudara; era assim inevitável que “Hunger Dogs” acabasse por não passar de mais um episódio da saga de Darkseid e Orion, muito longe do final que Kirby sempre idealizara.

A saúde de Kirby começa a deteriorar-se. Problemas na vista, nas mãos, no coração. 50 anos de trabalho árduo, dezenas de milhar de páginas desenhadas em condições raramente ideais. Uma infância de luta, glórias e tristezas, sucessos e facadas nas costas. Tudo se abatia enfim sobre o corpo de Kirby, então prestes a completar 70 anos. Sem esquecer, claro, a presença na 2ª guerra. E as outras guerras que foi forçado a travar…

A última década da vida de Jack Kirby é parcialmente passada a travar longas batalhas judiciais com a Marvel, em busca do devido reconhecimento pelas suas incontáveis criações. Em busca da simples devolução dos originais que desenhara. Vítima de complicações cardíacas, morre em 1994 aos 76 anos. Sempre “O Rei”; cada vez mais “O Rei”; coroado por uma nova geração de autores que reconhece a sua genialidade e os devidos créditos autorais. Milhares e milhares de páginas já foram escritas a seu respeito; outras tantas se seguem, certamente. Magazines especializados, análises, biografias. Relatos de uma obra ímpar; de um autor único. Do maior de sempre.


*Mário Freitas é o fundador e responsável da Kingpin Books, e leitor, estudioso e coleccionador inveterado de BD

#maiores criadores a solo

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